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Como o contrabando de carne da Argentina para o Brasil pode prejudicar o mercado? Entenda

Cargas sem certificação de origem,fugindo dos impostos e sem passar pelos devidos controles aduaneiros de fiscalização sanitária estão ameaçando o status conquistado pelo Paraná e Rio Grande do Sul, que levaram décadas para obterem a certificação de áreas livres de febre aftosa sem vacinação. Entenda os riscos

O cenário do mercado de carne no Brasil está em risco? A crescente prática de contrabando de gado da Argentina para os estados brasileiros do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul tem provocado um “alerta crítico”, de acordo com informações divulgadas pela Polícia Federal (PF) e reportadas pela Gazeta do Povo. Mesmo diante do aumento nos preços dos produtos na Argentina, decorrente da implementação da nova política econômica do presidente Javier Milei, a PF constatou um aumento no fluxo ilegal de animais em rotas clandestinas – ganhando proporções ainda maiores, destacando-se não apenas pelos preços, mas também pela qualidade genética. Mas como isso pode impactar o Brasil?

Segundo o jornal, o contrabando de gado argentino não apenas destaca a urgência de ações preventivas por parte das autoridades para conter essa prática ilícita que ameaça a economia e a segurança sanitária do país, mas também coloca em risco a integridade do mercado bilionário de carnes brasileiro – o oposto do que alguns especialistas dizem.

Mas existem vários pontos a serem questionados: cargas sem certificação de origem e sem passar pelos devidos controles aduaneiros de fiscalização sanitária estão ameaçando o status conquistado pelo Paraná e Rio Grande do Sul, que levaram décadas para obterem a certificação de áreas livres de febre aftosa sem vacinação pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), alcançada apenas no ano de 2021. 

Mas esta não é a única preocupação: não é apenas uma conquista simbólica, mas um incômodo para o mercado. Segundo eles, implica diretamente na aberturareabertura ou manutenção de mercados, especialmente aqueles altamente exigentes em questões sanitárias. Esses mercados não adquirem proteínas originárias de regiões com histórico de vacinação contra a febre aftosa. A entrada de animais provenientes de locais que ainda utilizam a imunização, como é o caso da Argentina, pode comprometer o status alcançado por esses estados, colocando em risco a reputação conquistada com esforço ao longo dos anos.

E tem mais: o Brasil, maior exportador mundial desses produtos, registrou vendas superiores a US$ 23 bilhões no último ano, conforme dados da Secretaria de Comércio Exterior. Desse montante, US$ 9,8 bilhões foram provenientes da avicultura, US$ 2,8 bilhões da suinocultura e expressivos US$ 10,8 bilhões da bovinocultura. Isso implica a necessidade de delicadeza para com a imagem internacional do brasil: além das implicações criminais, a entrada desses rebanhos no Brasil suscita “preocupações relacionadas à sanidade animal”: uma ameaça “significativa”, aos olhos do mercado global, para o mercado de carnes no país. 

Reprodução: Agência Brasil

Em entrevista exclusiva ao BSM, a pecuarista, veterinária e economista, Lygia Pimentel, sócia-fundadora do Agriffato, expressou suas preocupações sobre os impactos do contrabando de gado argentino em território nacional. Ela ressaltou que o problema vai além da simples concorrência desleal, afetando a arrecadação de impostos e a qualidade dos produtos que chegam ao mercado local.

Olha, com o contrabando, não se faz arrecadação de impostos, a gente não sabe exatamente como o produto que chega foi armazenado etc.”, destacou Pimentel, apontando para as falhas no sistema de inspeção brasileiro, que, embora seja eficiente, enfrenta desafios significativos quando se trata do contrabando. “Isso acaba burlando o sistema de inspeção brasileiro, que é eficiente, é um bom sistema para garantir a qualidade que chega ao consumidor”, diz.

Além disso, a pecuarista enfatizou que o contrabando compromete a competição justa no mercado local, trazendo uma carne mais competitiva em termos de preço, mas que não arrecada impostos nem segue as mesmas regulamentações que os produtores locais. Ou seja, resta apenas, diante deste cenário, uma concorrência desigualprejudicando a cadeia de produção desde o produtor até o distribuidor local.

“Esse é o problema, o mercado local acaba recebendo uma competição injusta também. Exatamente por essa questão, chega uma carne que, em termos de preço, é mais competitivanão arrecada impostosnão compete de maneira justacom esse mercado”, explicou Pimentel.

Contudo, levantando as esperanças ao abordar a dimensão do contrabando em relação ao mercado nacional, Pimentel destacou a magnitude do mercado brasileiro em comparação com o argentino. Em resumo, segundo a veterinária, embora o contrabando represente apenas uma fração do mercado nacional, a preocupação com seus efeitos sistêmicos e locais persiste.

“O contrabando é um pedacinho do mercado brasileiro, que é muito grande. Contudo, é prejudicial de maneira sistêmica, prejudicial de maneira local. Isso prejudica diretamente o consumidor pela questão da qualidade de armazenamento dessa carne, pela condição em que ela chega ao nosso mercado, além de trazer a concorrência injusta ao produtor local, ao distribuidor local, porque acaba não recolhendo impostos”, alertou a especialista.


A exigência sanitária

Reprodução: AEN-PR

Apesar de possuir o segundo maior rebanho bovino do mundo, com 234,4 milhões de animais, o Brasil fica atrás apenas da Índia, que conta com cerca de 300 milhões de cabeças. Concentrando 10% do rebanho nacional bovino, totalizando 24,3 milhões de cabeças, os estados do Sul, embora dominem a suinocultura e a avicultura, enfrentam desafios relacionados ao “status sanitário” no mercado.

No Brasil, com esse status, naturalmente estão sujeitas a rígidos requisitos sanitários as aquisições de animais pelos estados brasileiros, com a necessidade de compatibilidade de status e certificações específicas. Então, principalmente para os estados do Sul, que conquistaram o cobiçado título de “livres de aftosa sem vacinação”, a aquisição está restrita a regiões que compartilham o mesmo status, sendo Rondônia e Acre os únicos incluídos nessa lista.

“A grande maioria dos produtores segue as regras, obedece às normas e faz tudo de forma correta, mas o alerta fica com os que desrespeitam as regras e colocam as condições sanitárias em risco”, avalia a Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar).

Essa repercussão atingiu mercados exigentes como o Japão e a Coreia do Sul, que recusam a carne suína proveniente do Paraná devido ao histórico do estado, que era livre de aftosa, porém com vacinação até poucos anos atrás. A Adapar destaca que a maioria dos produtores segue as normas corretamente, mas alerta para aqueles que desrespeitam as regras, pois estão colocando “em risco” as condições sanitárias.

O setor produtivo, por sua vez, tem destacado a falta de profissionais do Serviço de Inspeção Federal (SIF) como um entrave não apenas para a fiscalização em regiões de fronteira, mas também para a produção agroindustrial em todo o território nacional. A preocupação persiste com a intensificação, segundo a PF, do contrabando da Argentina para o Brasil. Segundo a reportagem, existe uma necessidade de ações imediatas para a preservação das condições sanitárias e a manutenção das conquistas obtidas ao longo desses anos, para salvaguardar o mercado.


Rotas clandestinas

Reprodução: Agência Brasil

A PF destaca, segundo a reportagem, que a rota central para o contrabando de gado se estabelece entre as cidades de Santo Antônio do Sudoeste (PR) e Dionísio Cerqueira (SC). Os municípios se encontram na divisa entre os estados e coladas à fronteira com a Argentina. Em trechos onde a travessia a pé é facilitada, contrabandistas tiram proveito da falta ou precariedade da fiscalização nos postos avançados de controle sanitário, movimentando caminhões repletos de animais, principalmente durante a noite.

Em entrevista à reportagem, o presidente do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Agricultura (Conseagri) e secretário de Agricultura e Abastecimento do Paraná, Norberto Ortigara, disse:

“Nossa maior preocupação é com o risco sanitário; quanto ao descaminho e contrabando, é uma contravenção penal que precisa ser tratada pelas autoridades competentes nesse segmento. A Sesp [Secretaria da Segurança Pública do Paraná] tem fornecido apoio nos aspectos relacionados à segurança, mas nas questões sanitárias, há uma preocupação significativa”, diz.

Ainda expressou preocupações adicionais com os diagnósticos transfronteiriços, indicando um aumento não só no contrabando de gado, mas também de carnesagrotóxicosalhocebola alimentos em geral. Segundo ele, isso pode representar uma ameaça ao cultivo em várias frentes, incluindo o risco de patologias típicas de outras culturas

Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul são responsáveis por quase a totalidade das exportações de carne suína brasileira, superando 1,1 milhão de toneladas em um total de 1,2 milhãoexportadas em 2023. Esses estados também abrigam 60% da avicultura comercial do país. Nas rotas clandestinas destacadas pela PF, os carregamentos percorrem estradas vicinais ou rurais nestes estados até alcançarem propriedades ou abatedouros, muitas vezes situados em proximidade da fronteira. Algumas dessas vias cruzam os territórios dos dois países de maneira contígua.


A área conquistada e a falsificação de documentos

Reprodução: internet

Na luta para evitar a entrada de animais no Brasil seguida pelo tráfego com documentos falsificados, a Adapar tem adotado mecanismos especiais na emissão das Guias de Trânsito Animal (GTAs) em áreas de risco, especialmente na fronteira e nos limites entre estados com diferentes status sanitários. De acordo com a Adapar, as cargas em transporte devem ser lacradas pelo serviço veterinário oficial de origem, e os números dos lacres precisam constar no campo destinado a observações da GTA.

Essa exigência é conhecida como a implementação de lacres de carga, para evitar as situações de “falseamento da origem”: quando animais originários da Argentina são introduzidos no Brasil, criados na região sudoeste do Paraná, por exemplo, descansando por um período e, posteriormente, serem deslocados para outras regiões, como se tivessem nascido localmente – manipulando assim os registros. 

Foi identificado pela PF, há pouco mais de um ano, que contrabandistas estavam falsificando estes documentos de origem dos animais – declaração de nascimento – e preenchendo GTAs de forma fraudulenta, sem as quais o transporte é vetado. Nessa operação, por exemplo, um produtor declarou à Adapar que 50 animais teriam nascido em sua propriedade, todos machos. Ele quebrou a cara: a PF revelou que, apesar de metade do rebanho ser fêmea, não havia registro de nascimento de um único animal fêmea na fazenda em quase meia década.

Além disso, uma grande conquista foi feita: a Federação da Agricultura do Estado do Paraná (Faep), por exemplo, ressalta que, ao longo das últimas cinco décadas, tem trabalhado incansavelmente para conquistar o status de área livre de aftosa sem vacinação. Contudo, agora a vigilância e as ações de enfrentamento devem ser intensificadas continuamentepara não comprometer essa certificação, graças ao aumento do contrabando de gado vivo e alimentos para o Brasil. 

Quando um carregamento irregular de gado é apreendido, os animais são encaminhados para abate, e todo o material é destruído e descartado. Inclusive, as penas são altas e tendem a aumentar: os envolvidos são sujeitos a penas que somam até 18 anos de prisão. Em tais práticas ilícitas podem enfrentar acusações de contrabandoassociação criminosafalsidade ideológica e infração de medidas sanitárias preventivas